quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI - Crônica 5 – Parte II

Crônicas variadas – 1968-1974

Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte II
(Continuação da Parte I)

O pai e o irmão do colega kirguiz se aproximaram do carro e conversaram um pouco na língua deles, não em russo. Em seguida descemos do carro, nos cumprimentamos e fomos convidados a adentrar para uma antessala, cujas paredes e piso estavam forrados de tapetes e almofadas. Lá sentamos no chão ao redor de bandejas com alimentos. Ali comemos e bebemos por aproximadamente uma hora: sucos, frutas e passas, legumes, pastas e as partes de uma ovelha, aparentemente, as menos nobres. Passado este tempo, pensei que era tudo o que tínhamos que fazer naquela noite e, em breve, voltaríamos para Páhta-Aral. Mas não, na sequência nos convidaram para outro recinto, separado na sua passagem por uma cortina. Neste outro lado havia outra sala semelhante, mas maior que a primeira. Só que desta vez o ambiente se apresentava mais solene, até porque ali estavam sentados no chão seu avô e um tio, com mais alimentos postos no chão ou próximo ao chão.
De mulheres, nada! (Certamente, as que existiam estariam escondidas por ali perto, e não seriam pagãs. Mas sem dúvida, que havia mulher, havia!) As carnes oriundas do animal sacrificado durante o dia pareciam ser mais nobres, ao menos de melhor aparência que as servidas na sala anterior. Quase toda a interlocução com os nativos era feita por mim, pois o Mbui, na sua tensão ou deslumbramento, parecia estar distante. Comemos à exaustão e quando pensei ter o cerimonial chegado ao fim, meu colega kirguiz pediu para esperar um pouco mais; foi para os fundos e eu pensei: agora vai apresentar a esposa e filhos – não, não foi isto que aconteceu! Ele volta com uma linda bandeja de prata e sobre ela, a cabeça preta da ovelha cozida na água, com aquele focinho longo, com olhos e tudo e a depositou bem na minha frente. (Báh! – ... e o rosto do Mbui empalideceu) Eu não entendia! – O kirguiz disse então que, para encerrar o evento eu deveria distribuir entre os presentes um pedaço daquela iguaria - menos mal, pensei! Eu teria a oportunidade de escolher as partes menos exóticas. Escolhi então os músculos das bochechas, cuidando que também sobrasse, para mim, parte deles. Foi o que fiz. Tudo estaria terminado mas, novamente, eu errei! Falou meu colega kirguiz: - agora você deve servir ao Mbui e a si próprio as orelhas, (aquelas coisas pretas horríveis e cartilaginosas, porém mais deglutíveis que os olhos), pois hoje, comendo as orelhas diante dos mais velhos, significa que nós, os mais novos, seremos sempre receptivos aos conselhos dos mais velhos. Eu também comerei, completou. Meio que comemos, meio que mascamos partes daquelas orelhas.
Depois disto nós estávamos prontos para retornar quando, ainda na sala, o kirguiz disse que iria apresentar sua mãe: através de uma passagem para outro ambiente, de onde haviam trazido a bandeja com a cabeça da ovelha, entre duas cortinas entreabertas, mas fixas na parte superior, aparece um rosto de mulher asiática, da sua mãe; e depois, mais outro, certamente da sua esposa; e depois mais outros rostos menores, dos filhos, entre discretos sorrisos e cochichos. (Creio que já estavam a nos espiar havia algum tempo, através de alguma fresta – ao Mbui, com certeza!) Esta parte foi breve e em seguida, saímos e retornamos para a pousada já de madrugada, momento em que me senti então, uma pessoa de sorte.
 Pela tensão, respeito e escuridão, não fotografamos nada naquela noite.
Obs.: O cerimonial descrito tem alguma coincidência com certos ritos praticados nos dias que antecedem o final do período do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos, no qual eu, filho dos muito devotos, Cedalina e Theodoro Barbieri, tive a felicidade de ser um dos participantes sem ser considerado, depois, um herege.
Foto 2 – Dori nas estepes de Karakalpakya, frente às águas do degelo do planalto do Pamir no rio Sirdarya, que desaguava no antigo Mar de Aral – 1972 (região por onde passou Marco Polo na segunda metade do século XIII)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI - Crônica 5 – Parte I

Crônicas variadas – 1968-1974


Os anos vividos por mim como estudante na URSS, na Universidade Patrice Lumumba, propiciaram oportunidades de vivenciar situações, embora ocorridas a quase meio século, ainda permanecem um tanto quanto exóticas, apesar da velocidade com que acontece a desmistificação deste tipo de ocorrência. Eu as considero como uma bagagem da vida, fundidas no mérito e na sorte. A internet tem resgatados situações passadas, que em reavivando minhas lembranças e emoções, justificam deixá-las aqui registradas.

 Foto 1 - Xanxerê, SC -1974: retorno ao antigo lar do Dori, com os pais Theodoro e Cedalina, mais a tia Dozolina, que sempre pediram que escrevesse alguma coisa sobre a URSS e eu não lhes atendi em vida. Minha homenagem agora, para eles.

Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte I


Na primavera e verão no hemisfério norte, entre os meses de abril e setembro de 1972, a população do vilarejo de Páhta-Aral – sede da fazenda coletiva (kolhóz) de mesmo nome na república soviética do Kazaquistão, próximo a uma tríplice fronteira com o Uzbequistão e o Kirguistão – ficara atenta e curiosa com os novos visitantes estrangeiros, estagiários do curso de agronomia vindos da capital do país, a distante Moscou. Alguns deles realizavam suas atividades nos 20 mil hectares de plantações, setenta por cento das quais de algodão; para outros estagiários, entre os quais eu, as atividades ocorriam junto à Estação Agrícola Experimental local conduzindo as pequenas lavouras de testes e nos laboratórios. Além dos estudantes estrangeiros de Moscou, também faziam estágio alguns estudantes nativos das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. A atenção da população local para conosco talvez se devesse ao fato histórico de que, na segunda metade do século XIII, Marco Polo passara por ali, consolidando o caminho-da-seda. Agora chegou a vez de outros estrangeiros “reabrirem” novamente a rota-da-seda!
Certo dia, no mês de agosto, um estagiário da estação experimental, cuja família morava na república vizinha do Kirguistão, com o qual eu mantinha um relacionamento distante mesmo nos vendo pelos corredores todos os dias, surpreendentemente me convidou e pediu-me que reservasse algum tempo para, junto com ele, visitar a casa dos seus familiares.
O kirguiz sempre se comportava de forma muito reservada para comigo e com os outros estrangeiros que lá, temporariamente, estavam fazendo seus estágios. A casa da família dele ficava bem distante de Páhta-Aral, nas estepes (pradarias) que eram quase um deserto. Se fôssemos adiante, bem além da casa, iríamos encontrar o Planalto do Pamir, por onde passou Marco Polo. Nesta visita, ele providenciaria tudo e iríamos com seu carro. Surpreso, eu lhe perguntei, por que era eu o convidado. A resposta foi que não me preocupasse, pois meu amigo africano da República do Záire, o Mbui Cloude, iria também.

Na noite daquele dia na pousada, o Mbui me disse que o tal estagiário kirguiz o vinha convidando, fazia dias, para esta visita e ele, por temer alguma surpresa, condicionava a aceitação, à ida de mais um outro colega seu. Cheguei à óbvia conclusão que o verdadeiro convidado não era eu e sim, o meu amigo africano. Entretanto, fiquei contente com a oportunidade de conhecer um pouco mais da região e decifrar a cabeça do colega nativo. Depois de uns vinte dias sem se ouvir mais menção sobre o assunto, pensamos que o nosso futuro anfitrião havia recuado do convite, mas não. Num dos dias subsequentes ele nos pediu que, no dia seguinte, após o trabalho na estação experimental, nós dois não retornássemos de ônibus para a nossa pousada, que ficava a uns 20 km do local, pois iríamos visitar seus familiares com seu carro e participar de uma solenidade ou coisa parecida. Depois, nos traria de volta até a pousada.
Foto 2 – Mbui e Dori: estágios na República da Moldávia, próximo à cidade de Dubassar, 1971

No dia seguinte, ficamos esperando por ele após o trabalho na estação experimental. Deu 19 horas... 20 horas..., e nada do colega. (Um novo ônibus para a nossa pousada só partiria no dia seguinte!). Passava das 20 horas, já estava um pouco escuro – era verão – quando ele apareceu com o carro e pediu para esperarmos um pouco mais. – Mas, por que? - Porque nós precisamos chegar à casa já no escuro total, respondeu o kirguiz - !?!?!?... (O Mbui tinha razão em exigir a companhia de alguém mais, pensei). Embarcamos no volga - carro equivalente a um opala, na época no Brasil - e depois de rodar longo tempo por uma estrada de asfalto compactado, sem ter visão do que havia por onde estávamos passando, chegamos a um lugar com três ou quatro tendas, ou casas mal iluminadas que, mesmo com ajuda da luz das estrelas e da lua, eu não conseguia definir. Foi possível sentir que ali próximo havia ovelhas e também cavalos e asnos, abundantes na região. Eu notava que o Mbui estava muito mais preocupado do que eu. A partir de então, ele quase não mais falou – no seu semblante somente se viam aquelas duas bagas de olhos cintilarem sobre seus lábios trementes!
 (Continua na parte II)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

VISITA À UNIVERSIDADE RUSSA DA AMIZADE DOS POVOS - II

 
 
Oswaldo no VI Encontro - Mairiporã-SP

Oswaldo Mendes
Formado em Engenharia Mecânica
Ano de formatura: 1967

PARTE II - Novo Campus da Universidade Russa da Amizade dos Povos - RUDN

Depois de visitar o antigo corpus da Universidade, que foi objeto da Parte I do trabalho, gostaria de lhes apresentar, nessa Parte II, a visita que fiz ao novo Campus da Universidade que foi fundada com o nome de Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba – UDN – mas que, após a dissolução da União Soviética, passou a ser chamada de Universidade Russa da Amizade dos Povos – RUDN.
 
Considero que os colegas que estudaram e viveram nas dependências do novo Campus, terão recordações valiosas dos tempos de estudantes naquela bonita área acadêmica.
A minha visita à Universidade se deu em meados de agosto de 2015, época de férias acadêmicas de verão na Rússia, assim como em todo território Europeu. Daí a razão de haver tão poucos alunos ou funcionários nos pátios mostrados nas fotos a seguir.

                   
Foto 1- Entrada principal da universidade – RUDN (prédios da Administração e Reitoria)




15 de outubro de 2015
Oswaldo Mendes

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

VISITA À UNIVERSIDADE RUSSA DA AMIZADE DOS POVOS - I

Oswaldo no VI Encontro - Mairiporã-SP


Oswaldo Mendes
Formado em Engenharia Mecânica
Ano de formatura: 1967


PARTE I -  Donskoi Proiezd, Boulevar, Obshejitie da Pávlovskaya, Danilovsky Rynok e Momentos Históricos da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos

Depois de algum tempo, eu e a minha esposa Lyudmila Yakovleva Mendes, decidimos fazer uma viagem a Moscou com o objetivo de rever os familiares da minha companheira de tantos anos, passear pela cidade, rever aquelas localidades que frequentávamos no nosso tempo de estudante e, claro, rever as instalações da nossa Universidade, em cujos bancos recebemos ensinamentos valiosos que serviram de base para alavancar as nossas vidas profissionais.

Deixei Moscou, de volta ao Brasil logo após a defesa da tese de diploma em 1967, acompanhado da minha aliada e esposa.

De 1967 até a presente data, desenvolvi a minha vida profissional como engenheiro mecânico na área de Turbinas Térmicas. Realizei trabalhos no setor estatal e privado, e tive a honra de transmitir os bons conhecimentos lá adquiridos aos alunos das faculdades de Engenharia da Universidade Católica de Petrópolis e Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Nessa atividade profissional, alcancei o posto de Chefe da Cadeira de Termodinâmica Aplicada e de Máquinas Térmicas.

Nesse período de 48 anos, o mundo mudou muito: Moscou mudou, nossa Universidade também mudou e, como tudo, nós também mudamos.

Grande parte do meu tempo em Moscou foi dedicado a visitas às instalações da Universidade, dando enfoque especial àquelas que eram utilizadas pela Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba na década de 60.

Como a quantidade de fotos é expressiva, vamos apresentar esse trabalho por partes. Primeiramente vou enfocar minha visita ao primeiro corpus da nossa Universidade, situado na Piaty Donskoi Proiezd. Especificamente, ao alojamento da Pavlovskaia, ao Boulevar por onde caminhávamos diariamente no trajeto entre a Pavlovskaia e a Donskoi, e vice-versa.
  
O prédio da Donskoi, onde recebemos tantos ensinamentos e onde batíamos longos papos depois das aulas, principalmente na stolovaia e no pátio ao ar livre, lá está ele, exibindo a arquitetura majestosa que me sensibilizou tanto ao voltar a subir aqueles degraus de entrada, repetindo o mesmo gesto de uma rotina que fez parte da minha vida durante os cinco anos em que lá estudei.

Foto 1 - Prédio principal da Universidade na década de 60, na Piaty Donskoi Proiezd - hoje chamada de Ulitsa Ordjonikidze.

Observem, colegas, o estado atual do Boulevar onde as árvores, naquela época, eram de pequeno porte e, agora, são de grande porte, oferecendo agradáveis sombras a quem por ele passa.

Foto 2 – Boulevar que ligava o Prédio Principal da Universidade à Residência dos estudantes na  Pavlovskaia Ulitsa – nosso caminho de todos os dias.

O prédio da Pavlovskaia continua imponente e tenho certeza absoluta que aqueles que lá viveram sentirão saudades ao olhar essas fotos.

Foto 3 – Prédio: o alojamento estudantil onde moramos na Pavlovskaia Ulitsa.

Até aquele mercado, chamado “Danilovsky Rynok”, outrora pequeno e simples, foi reconstruído e transformou-se em uma grande área de comercialização de produtos de primeira necessidade. 

Foto 4 - Após o Boulevar, está o Danilovsky rynok- nos anos 60 e 70 era apenas um mercadinho humilde, hoje sofisticado mercado frequentado por carrões.


Duas fotos de alto interesse histórico registram os momentos da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos no ano de 1960, onde, na primeira, o chefe do governo da URSS, Nikita Kruschev, fazia o seu discurso na cerimônia e na segunda, vê-se Nikita Kruschev junto com o primeiro Reitor da Universidade, Serguei Rumiántsev.

É a metamorfose da vida: tudo muda com o tempo. O corpus atual da Universidade, que naquela época estava sendo construído, hoje é um colosso com uma grande área arborizada no lado esquerdo da Lenisky Prospekt, no sentido ao bairro. Todas as construções dos grandes blocos das diferentes faculdades e das residências estudantis foram feitas com uma arquitetura moderna, como merece uma grande instituição de ensino moderno e avançado.

Essa parte do atual corpus da Universidade será objeto da Parte 2, a ser postada no nosso blog oportunamente.

Colegas, vocês não imaginam o estado da minha alma quando visitei aqueles lugares onde passei o melhor período da minha juventude. Certamente, o mais encantador da minha jornada estudantil.


Foto 5 - Momento histórico: o chefe do governo da URSS Nikita Krushev profere o discurso na Fundação da Universidade da Amizade dos Povos.

Foto 6 - Momento histórico da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos em 1960, onde se pode ver o chefe do governo da URSS, Nikita Krushev, e o primeiro reitor da Universidade da Amizade dos Povos, Serguei Rumiántsev.


Nos próximos textos abordaremos outros temas relacionados com a minha visita à Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN), ex-Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, e a outros pontos atrativos da cidade de Moscou.

15 de outubro de 2015
Oswaldo Mendes


terça-feira, 24 de novembro de 2015

Comunicado – A Rússia em Pauta

André Luis Paulo Tomasi–Vshivtsev, que fez o curso de Física na Universidade de Moscou – Lomonosov de 2007 a 2013, tem se especializado em planejamento de passeios turísticos e formação de grupos para viajar à Rússia. Ao lado disso, presta assessoria para quem desejar estudar nesse país. Ele oferece ainda cursos de russo com duração de 4 a 18 meses, preparando as pessoas para o aprendizado e o conhecimento da língua e da cultura russas.
Os interessados poderão entrar em contato com André Tomasi pelo e-mail: “andre@cbr.tur.br” e site: “www.cbr.tur.br”.


terça-feira, 17 de novembro de 2015

CANTINHO DA SAUDADE

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI

Crônicas variadas – 1968-1974

PARTE III – Crônica 4 (Continuação da crônica 1): ...1968 no Baikonur e em Tashkent -  Uzbekistão


Após as infindáveis horas vividas no inferno gelado dentro do hangar, anunciou-se que em breve embarcaríamos no IL-18 para Tashkent, imaginamos que o suplício estava terminando. Mera ilusão! No curto trajeto até a aeronave na pista, ocorreram as fotografias mencionadas anteriormente e na sequência, subi a escada do avião sentindo as luvas parecer grudando no corrimão da mesma, mas imaginando encontrar, ao final, um salão de passageiros caloroso e confortável.

Foto 1 - Embarque no Baikonur: Dori e o guarda kazak que queria impedir as fotos

O avião passara dezenas de horas ao relento e todo ele havia alcançado inclusive internamente, a temperatura do ambiente externo, com 30 ou mais graus negativos, não mostrando ainda, nenhum sinal de vida própria. Pensei que minhas roupas pudessem grudar no assento – Não grudaram! Mesmo com todos os passageiros sentados, a porta permanecia aberta e a aeronave, sem vida mecânica. Só depois de meio-hora foi possível ver as hélices de apenas um dos motores se mover. Nos dez minutos iniciais, os giros delas eram como a de um ponteiro dos segundos de um relógio. Às vezes paravam para depois recomeçar a girar com mais rapidez. Finalmente, ocorreu a explosão interna própria do motor. Creio que só para este primeiro motor, e eram quatro, passaram-se uns 50 minutos para atingir giro máximo. Quanto ao aquecimento interno, nada! Exceto o calor humano e o vapor das narinas, que a essa altura ajudavam aquecer o avião. Assim, com este gasto de tempo do primeiro motor, sucessivamente foram ligados os três motores turbo hélice restantes. Creio que o procedimento consumiu umas três horas de espera, tempo suficiente para nós, os passageiros, esquentássemos o interior do avião, ou para morrer sufocados se a porta não tivesse estado aberta. Certamente, foi explicado aos demais passageiros em língua russa e uzbeke o motivo daquela lentidão, que só fomos entender mais tarde: rolamentos, mancais, eixos e peças móveis quando expostos a temperaturas tão baixas, são como cristais que, com o menor impacto ou atrito, podem se danificar.

Ao chegarmos a Tashkent, procuramos um taxi e rumamos para o Hotel Intourist, o hotel dos turistas na URSS, com passaportes de estrangeiros, conversa de estrangeiros e o mais importante, moeda forte - as verdinhas se fosse preciso, o Caio disse que tinha em espécie, e eu, em travellers. Tudo em vão. Os funcionários e o gerente do hotel foram inflexíveis: Só com reserva prévia. E o hotel, parecia vazio. (Penso agora, que o forte frio atípico para a região pôde ter provocado o colapso do sistema de aquecimento e tinham vergonha de admitir isto para duas autoridades brasileiras). Contudo, ajudaram-nos ligando para outros lugares e no final, nos indicaram um tipo de pousada para onde o taxista nos conduziu.  Mas lá, não recebiam estrangeiros. Voltamos ao hotel para tentar de novo e de novo, nada. O final do dia se aproximava e o pavor do frio, assustava. O taxista nos levou então para uma casa de estudantes. Mas, aproveitando a ausência dos estudantes que haviam entrado em férias, o sistema de calefação estava em manutenção. Creio que foi o taxista que convenceu um casal de velhinhos que cuidava do local a nos receber para pernoitar. O vovô e a vovó nos alertaram que, água quente só havia no andar térreo, próximo à cozinha, e o quarto, seria no terceiro andar, só com cama e roupas, sem calefação. Tínhamos chegado ao paraíso!

 
            
 Foto 2 - Dori em frente à Casa de Estudantes            Foto 3 - Caio e Dori passeando por Tashkent

Na manhã seguinte o casal nos serviu o “café” (na realidade o chá) e começamos a nos apresentarmos. O fato de sermos da terra do Pelé e Garrincha – algozes dos russos na copa de 58 – selou nossa amizade. (Algozes, pela frustração causada e não por outro motivo.)  Mandamos todos os hotéis e palácios da cidade às favas e fizemos do local, nossa base verde-amarela na União Soviética. Saíamos de manhã para conhecer a cidade e seus arredores, situada junto à antiga rota da seda e voltávamos ao final da tarde.
Vimos e vivemos os costumes e os hábitos da culinária local: macarrão e variedades de tortéis, chás de primeiríssima (no sabor) acompanhados de pelotas de queijo duro de cabra para roer, passas de frutas ou melão seco, discos de pão assado na pedra ou em tijolos, o risoto plôv e os espetinhos deliciosos de carne de ovelha karakul, cuja parte mais apreciada é o rabo, que tem a forma e textura de um cupim de zebu, pendurado na traseira.

Frequentamos as mesquitas e os barzinhos da cidade, aliás, as casas de chá daquele povo amável. (Os burocratas antipáticos do hotel deviam ser, todos russos!)

Foto 4 - Dori e o lanche de espetinho de ovelha com macarrão e a chaleira do chá

        
     Foto 5 - Dori defronte a uma mesquita                          Foto 6 – Dori e um Uzbek típico -
                             da cidade velha                                                               Tashkent 1968        
                                 
        
                             Foto 7 - Dori numa Casa de Chá típica da época - Tashkent 1968

O frio amainava aos poucos, mas ainda era muito forte e nos torturava. Depois de quatro ou cinco dias em Tashkent decidimos voltar para Moscou. Uma das formas de gastar as infindáveis noites das férias no inverno de janeiro era jogando canastra com brasileiros e latinos no quarto do Carioquinha na Rua Mosfilm. Ali o revezamento dos presentes entre as partidas e o preparo de feijoadas ou macarronadas nas madrugadas, era intenso e agitado. O Caio, creio eu, passou o resto das férias de inverno se aquecendo nas saunas de Moscou, pois andou meio desaparecido.
Foi este o meu batismo na Ásia Central em tempos de um rigoroso inverno russo.




segunda-feira, 2 de novembro de 2015

CANTINHO DA SAUDADE



TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI

Crônicas variadas – 1968-1974

PARTE I I – Crônica 3

- Dori Carlos Barbieri, 1946, natural de Seara – SC.
- Formado em Agronomia no ano de 1974 na U.A.P. Patrice Lumumba, Moscou.
- Ao retornar ao Brasil, exerceu atividades profissionais inicialmente  em cooperativa agrícola e, depois, em diversas empresas integradoras de produção animal e de alimentos em funções ligadas à Nutrição Animal ou de Gerência Técnica de Agropecuária em SC, no interior do PR, de SP e no MS.
- Aposentado desde 2007; atualmente desmobilizado de qualquer atividade profissional.
- Casado desde 1979 com Vilma Zanette e tendo um casal de filhos; a Larissa, que está próximo a nós, e o Pável, que nos deixou em definitivo com 17 anos.
- Residência atual em Balneário Camboriú - SC.

3) O ‘colombiano’, de sotaque espanhol-mexicano  
  e de um inglês-californiano
Na virada do ano de 2014 aqui no norte catarinense onde moro, visitou-me um ex-colega de faculdade em Moscou com sua atual esposa sueca. Ele já tinha sido casado na URSS, com filha de militar soviético de respeitável patente, e me lembrou que eu tinha sido seu padrinho de casamento de última hora, em 1973, junto com uma colega mexicana. (Havia esquecido!). Nós moramos juntos, no mesmo quarto, na casa dos estudantes da Rua Pávlovskaia nos anos 1972/73/74, com mais um ucraniano. O sujeito dizia ser colombiano e se chamava Carlos Sanches. Mas que, na verdade, era da América do Norte, como me relatou agora. Revelou também que estava vivendo e estudando em Paris quando eclodiu a revolta estudantil de 1968, na qual ele teve participação ativa. Abafada a revolta, foi com o apoio do serviço secreto soviético - um dos insufladores da mesma - que obteve nova identidade, a de colombiano, conseguindo assim se evadir da França. (Não é o Carlos Chacal, o venezuelano Ilítch Ramires, que cumpre pena atualmente na França e que pode ser assunto de uma crônica futura, pelo breve período convivido em 1968/69.) Mais tarde, quando Moscou teve conhecimento de outros antecedentes seus, teria sido considerado pelos soviéticos como espião ou agente duplo. (Queria o que?). Foi neste período que os russos o colocaram a morar comigo e o ucraniano. Certamente o ucraniano era o olheiro. A história toda da vida do Carlos é inverossímil à primeira análise. Mas tudo se liga agora quando ele menciona detalhes e seus motivos, também vividos por mim, entre os quais os pavorosos pesadelos que o perturbavam à noite, quando aos gritos pedia por socorro e ajuda, ou ditando ordens. Eu o despertava e o Carlos:...áhhh...tudo bem...tudo bem! (Em 2015, isto me parece um filme de ficção). Evidente que ficou a pão-e-água por quase três anos. E eu o ajudava sem saber quem ele realmente era e, quando o questionava, alegava ter perdido o passaporte e, por isso, nem sempre recebia o estipêndio (bolsa de estudos). Em Moscou, duas semanas antes de recebermos nossos diplomas de engenheiro agrônomo, ao entrar no quarto eu o encontrei apavorado e mexendo desordenadamente em papéis. Ao ser perguntado do motivo, disse que seria deportado para a Finlândia no dia seguinte, e evasivamente, por estar envolvido em coisas ilegais - pensei em drogas. Eu precisava sair, pois havia entrado para pegar alguma coisa e ao retornar ao quarto, meia hora depois, para minha surpresa, nada mais existia do colega colombiano, enquanto que o ucraniano passou a não mais dormir no quarto nos quinze dias que antecederam meu retorno ao Brasil. Passados 40 anos, nos reencontramos agora - sem saber do destino de cada um neste intervalo -, ocasião em que ficaram claros para mim os detalhes desta história toda que eu não compreendia: O Carlos não foi deportado, mas sim fugiu da URSS, só com papéis do histórico da faculdade e roupa do corpo, com auxilio do serviço secreto alemão ocidental, que lá possuía contatos com certos professores (as) da Alemanha Oriental. Ele agora me afirma que, no fundo no fundo, eu o ajudei a não morrer de fome e do frio de Moscou, nos seus três anos de vacas muito magras e de perspectivas aterradoras, sem documentos, nacionalidade e família. Hoje é cidadão sueco aposentado, casado com esposa também sueca. Possuem filhos crescidos e já profissionais. Viveram no Brasil por 7-8 anos no final e início da década de 80 e 90, ocasião em que me procuraram e não conseguiram me encontrar. Eles tiveram aqui cargos públicos federais e, também, na iniciativa privada. Ele desejava que alguém comprovasse para sua família essas histórias inverossímeis, de parte da vida dele. Após a fuga da URSS, o Carlos jamais retornou ao país de origem. Ele me considera um irmão, único, pois nada lhe restou emocionalmente da família anterior à sua ida para a União Soviética.

Em breve o Carlos me visitará no Brasil. Iremos brindar novamente as belezas da vida e os seus percalços superados, sabendo que, para muitos, a vida não permitiu superá-los. E vamos filosofar também!

Foto 1 – Dori (à direita) e sua turma na Sibéria em 1970: esta foi a minha 
contribuição para as ferrovias da Sibéria.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O PAPA FRANCISCO

Para mim, não há dúvidas de que o Papa Francisco está mais para Galileu do que para Giordano Bruno. Dizem que nos tempos de arbítrio do regime militar na Argentina – uma ditadura brutal que assassinou milhares de pessoas – o cardeal Mario Jorge Bergoglio teria sido conivente com a repressão, sequestros e assassinatos cometidos pela Junta Militar.
               Giordano Bruno – filósofo napolitano e frade dominicano que viveu no século XVI. Foi condenado à morte na fogueira da Santa Inquisição como herege, por apontar erros teológicos na doutrina da Igreja e por defender o heliocentrismo de Nicolau Copérnico. No Tribunal, ofereceram-lhe a chance de abjurar suas ideias. Não quis! Preferiu morrer a renegá-las.
                Galileu Galilei – considerado o “pai da ciência moderna”, foi um físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano que viveu na segunda metade do século XVI e na primeira do século XVII. Avançou muito na comprovação do heliocentrismo. Foi também julgado pela Santa Inquisição e condenado: (1) a abjurar publicamente suas ideias e (b) à prisão perpétua. Seus livros  foram incluídos no Index, portanto censurados e proibidos. De público, Galileu abjurou suas ideias, mas para seus botões, proclamou: eppur si muove! – “contudo ela [a Terra] se move!”.
                A prisão perpétua foi, depois, comutada para confinamento, inclusive em casa. Assim, pôde ele dar sequência às pesquisas e continuar sua contribuição ao desenvolvimento da ciência. Quando Isaac Newton disse: “Se vi mais longe, foi porque me apoiei no ombro de gigantes”, certamente estava se referindo também – e principalmente – a Galileu.
Papa Francisco – O filósofo, escritor e linguista italiano Umberto Eco, em entrevista à jornalista Ilze Sacamparini nesta semana, disse – em brincadeira - uma frase interessante sobre o Papa: “Ele não é argentino, é paraguaio!”. Explicou: ele é um sacerdote herdeiro das tradições jesuíticas do século XVII, que surgiram a partir de 1607 na Província do Paraguai (que compreendia o atual Paraguai, o leste da Bolívia, a Argentina, o Uruguai e o sudoeste do Brasil).
Luiz Carlos Azenha, em excelente texto, ajuda-nos a entender. Ele comenta o episódio em que o presidente Evo Morales deu de presente ao Papa Francisco uma escultura de madeira que mostra Cristo crucificado em foice e martelo. Representantes da grande mídia latino-americana e brasileira chamaram de “aberração” e de “estupidez” a atitude de Evo.
             Pior, faltando com a verdade ao dizer que o Papa teria manifestado desconforto com o presente e dito “Não se faz isso!”, quando o áudio deixa claro que o que ele disse, sorrindo, depois que Evo explicou a origem do mesmo, foi: “Não sabia disso!”. Afinal, Francisco – jesuíta que é - não desconhece a experiência histórica da Companhia de Jesus, que criou a chamada “República Comunista Cristã dos Guarani”. Foi ela que, por mais de um século e meio, permitiu que os índios, “acedessem ao estatuto de cidadãos livres, em tudo semelhantes aos espanhóis e, em muitos aspectos, culturalmente superiores”.
             O que a mídia conservadora não sabe – ou esconde -, é que a referida escultura de Cristo crucificado em foice e martelo é uma reprodução daquela criada pelo padre jesuíta espanhol Luis Espinal, um teólogo da libertação que tinha ligação com os movimentos sociais da Bolívia e que foi assassinado por paramilitares bolivianos em 1980. Por outro lado, o Papa Francisco sabe que a foice e o martelo, em cruz, simbolizam a unidade dos camponeses e operários.
           Por sua coragem de retomar os princípios básicos da Teologia da Libertação e de denunciar o capitalismo selvagem, chamando-o de “ditadura sutil”, os setores conservadores brasileiros e latino-americanos odeiam o Papa Francisco. Neste sentido, o comentário de Paulo Henrique Amorim é preciso: “No Brasil de hoje, se dependesse da oposição que temos o pontífice, provavelmente, estaria sujeito a um processo de impeachment ou coisa parecida. Isso se alguém não pedisse a recontagem dos votos dos cardeais que o elegeram”.
                Não há dúvidas de que o Papa Francisco é um papa que está anos-luz à frente de todos os seus antecessores. O sorriso constante em seus lábios e a coragem de dizer a quem precisa ouvir as verdades que precisam ser ditas – principalmente aos que se consideram donos do Mundo e que vivem a promover a destruição e a barbárie – faz dele um papa com um lugar de destaque em toda a história do Vaticano.
            Principalmente por sua simplicidade e humanismo!
            O papel que ele teve na reaproximação diplomática entre Cuba e os EUA e – numa mediação junto com Raul Castro – na construção do acordo entre o governo colombiano e as FARC’s, como passo decisivo para alcançar uma paz definitiva no país depois de 50 anos de guerra civil, fala também de sua estatura política.
            Como diz Mauro Santayana, “Francisco é um farol a iluminar o que resta de sensatez na espécie humana – uma bússola para indicar o caminho nestes tempos sombrios, em que as forças do ódio e do atraso insistem em tentar impedir que amanheça, neste novo século, um novo dia”.

Emerson Leal – Ex-vice-prefeito de São Carlos por dois mandatos.