terça-feira, 15 de dezembro de 2015

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI - Crônica 5 – Parte I

Crônicas variadas – 1968-1974


Os anos vividos por mim como estudante na URSS, na Universidade Patrice Lumumba, propiciaram oportunidades de vivenciar situações, embora ocorridas a quase meio século, ainda permanecem um tanto quanto exóticas, apesar da velocidade com que acontece a desmistificação deste tipo de ocorrência. Eu as considero como uma bagagem da vida, fundidas no mérito e na sorte. A internet tem resgatados situações passadas, que em reavivando minhas lembranças e emoções, justificam deixá-las aqui registradas.

 Foto 1 - Xanxerê, SC -1974: retorno ao antigo lar do Dori, com os pais Theodoro e Cedalina, mais a tia Dozolina, que sempre pediram que escrevesse alguma coisa sobre a URSS e eu não lhes atendi em vida. Minha homenagem agora, para eles.

Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte I


Na primavera e verão no hemisfério norte, entre os meses de abril e setembro de 1972, a população do vilarejo de Páhta-Aral – sede da fazenda coletiva (kolhóz) de mesmo nome na república soviética do Kazaquistão, próximo a uma tríplice fronteira com o Uzbequistão e o Kirguistão – ficara atenta e curiosa com os novos visitantes estrangeiros, estagiários do curso de agronomia vindos da capital do país, a distante Moscou. Alguns deles realizavam suas atividades nos 20 mil hectares de plantações, setenta por cento das quais de algodão; para outros estagiários, entre os quais eu, as atividades ocorriam junto à Estação Agrícola Experimental local conduzindo as pequenas lavouras de testes e nos laboratórios. Além dos estudantes estrangeiros de Moscou, também faziam estágio alguns estudantes nativos das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. A atenção da população local para conosco talvez se devesse ao fato histórico de que, na segunda metade do século XIII, Marco Polo passara por ali, consolidando o caminho-da-seda. Agora chegou a vez de outros estrangeiros “reabrirem” novamente a rota-da-seda!
Certo dia, no mês de agosto, um estagiário da estação experimental, cuja família morava na república vizinha do Kirguistão, com o qual eu mantinha um relacionamento distante mesmo nos vendo pelos corredores todos os dias, surpreendentemente me convidou e pediu-me que reservasse algum tempo para, junto com ele, visitar a casa dos seus familiares.
O kirguiz sempre se comportava de forma muito reservada para comigo e com os outros estrangeiros que lá, temporariamente, estavam fazendo seus estágios. A casa da família dele ficava bem distante de Páhta-Aral, nas estepes (pradarias) que eram quase um deserto. Se fôssemos adiante, bem além da casa, iríamos encontrar o Planalto do Pamir, por onde passou Marco Polo. Nesta visita, ele providenciaria tudo e iríamos com seu carro. Surpreso, eu lhe perguntei, por que era eu o convidado. A resposta foi que não me preocupasse, pois meu amigo africano da República do Záire, o Mbui Cloude, iria também.

Na noite daquele dia na pousada, o Mbui me disse que o tal estagiário kirguiz o vinha convidando, fazia dias, para esta visita e ele, por temer alguma surpresa, condicionava a aceitação, à ida de mais um outro colega seu. Cheguei à óbvia conclusão que o verdadeiro convidado não era eu e sim, o meu amigo africano. Entretanto, fiquei contente com a oportunidade de conhecer um pouco mais da região e decifrar a cabeça do colega nativo. Depois de uns vinte dias sem se ouvir mais menção sobre o assunto, pensamos que o nosso futuro anfitrião havia recuado do convite, mas não. Num dos dias subsequentes ele nos pediu que, no dia seguinte, após o trabalho na estação experimental, nós dois não retornássemos de ônibus para a nossa pousada, que ficava a uns 20 km do local, pois iríamos visitar seus familiares com seu carro e participar de uma solenidade ou coisa parecida. Depois, nos traria de volta até a pousada.
Foto 2 – Mbui e Dori: estágios na República da Moldávia, próximo à cidade de Dubassar, 1971

No dia seguinte, ficamos esperando por ele após o trabalho na estação experimental. Deu 19 horas... 20 horas..., e nada do colega. (Um novo ônibus para a nossa pousada só partiria no dia seguinte!). Passava das 20 horas, já estava um pouco escuro – era verão – quando ele apareceu com o carro e pediu para esperarmos um pouco mais. – Mas, por que? - Porque nós precisamos chegar à casa já no escuro total, respondeu o kirguiz - !?!?!?... (O Mbui tinha razão em exigir a companhia de alguém mais, pensei). Embarcamos no volga - carro equivalente a um opala, na época no Brasil - e depois de rodar longo tempo por uma estrada de asfalto compactado, sem ter visão do que havia por onde estávamos passando, chegamos a um lugar com três ou quatro tendas, ou casas mal iluminadas que, mesmo com ajuda da luz das estrelas e da lua, eu não conseguia definir. Foi possível sentir que ali próximo havia ovelhas e também cavalos e asnos, abundantes na região. Eu notava que o Mbui estava muito mais preocupado do que eu. A partir de então, ele quase não mais falou – no seu semblante somente se viam aquelas duas bagas de olhos cintilarem sobre seus lábios trementes!
 (Continua na parte II)

Um comentário:

  1. Coisas interessantes que fazem parte de culturas diferentes.Quando as presenciamos nos fazem refletir sobre nossas atitudes e comportamentos e porquê não dizer ¨medos ¨.
    Depois disto podemos concluir que estamos indo numa direção oposta a estas culturas orientais que prezam pelo respeito e reconhecimento acima de tudo para com os pais e idosos.

    ResponderExcluir