Crônicas variadas – 1968-1974
Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte II
(Continuação da Parte I)
O pai e o irmão do colega kirguiz
se aproximaram do carro e conversaram um pouco na língua deles, não em russo.
Em seguida descemos do carro, nos cumprimentamos e fomos convidados a adentrar
para uma antessala, cujas paredes e piso estavam forrados de tapetes e
almofadas. Lá sentamos no chão ao redor de bandejas com alimentos. Ali comemos
e bebemos por aproximadamente uma hora: sucos, frutas e passas, legumes, pastas
e as partes de uma ovelha, aparentemente, as menos nobres. Passado este tempo,
pensei que era tudo o que tínhamos que fazer naquela noite e, em breve,
voltaríamos para Páhta-Aral. Mas não, na sequência nos convidaram para outro
recinto, separado na sua passagem por uma cortina. Neste outro lado havia outra
sala semelhante, mas maior que a primeira. Só que desta vez o ambiente se
apresentava mais solene, até porque ali estavam sentados no chão seu avô e um
tio, com mais alimentos postos no chão ou próximo ao chão.
De mulheres, nada! (Certamente, as que existiam estariam
escondidas por ali perto, e não seriam pagãs. Mas sem dúvida, que havia mulher,
havia!) As carnes oriundas do animal sacrificado durante o dia pareciam ser
mais nobres, ao menos de melhor aparência que as servidas na sala anterior.
Quase toda a interlocução com os nativos era feita por mim, pois o Mbui, na sua
tensão ou deslumbramento, parecia estar distante. Comemos à exaustão e quando
pensei ter o cerimonial chegado ao fim, meu colega kirguiz pediu para esperar um pouco mais; foi para os fundos e eu
pensei: agora vai apresentar a esposa e filhos – não, não foi isto que
aconteceu! Ele volta com uma linda bandeja de prata e sobre ela, a cabeça preta
da ovelha cozida na água, com aquele focinho longo, com olhos e tudo e a
depositou bem na minha frente. (Báh! – ... e o rosto do Mbui empalideceu) Eu não entendia! – O kirguiz disse então que, para encerrar o
evento eu deveria distribuir entre os presentes um pedaço daquela iguaria - menos mal, pensei! Eu teria a
oportunidade de escolher as partes menos exóticas. Escolhi então os músculos
das bochechas, cuidando que também sobrasse, para mim, parte deles. Foi o que
fiz. Tudo estaria terminado mas, novamente, eu errei! Falou meu colega kirguiz: - agora você deve servir ao Mbui e a si próprio as orelhas, (aquelas coisas pretas horríveis e
cartilaginosas, porém mais deglutíveis que os olhos), pois hoje, comendo as orelhas diante dos mais velhos, significa que
nós, os mais novos, seremos sempre receptivos aos conselhos dos mais velhos. Eu
também comerei, completou. Meio que comemos, meio que mascamos partes
daquelas orelhas.
Depois disto nós estávamos prontos para retornar quando, ainda na
sala, o kirguiz disse que iria
apresentar sua mãe: através de uma passagem para outro ambiente, de onde haviam
trazido a bandeja com a cabeça da ovelha, entre duas cortinas entreabertas, mas
fixas na parte superior, aparece um rosto de mulher asiática, da sua mãe; e
depois, mais outro, certamente da sua esposa; e depois mais outros rostos
menores, dos filhos, entre discretos sorrisos e cochichos. (Creio que já
estavam a nos espiar havia algum tempo, através de alguma fresta – ao Mbui, com
certeza!) Esta parte foi breve e em seguida, saímos e retornamos para a pousada
já de madrugada, momento em que me senti então, uma pessoa de sorte.
Pela tensão,
respeito e escuridão, não fotografamos nada naquela noite.
Obs.:
O cerimonial descrito tem alguma coincidência com certos ritos praticados nos
dias que antecedem o final do período do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos, no
qual eu, filho dos muito devotos, Cedalina e Theodoro Barbieri, tive a
felicidade de ser um dos participantes sem ser considerado, depois, um herege.
Foto 2 – Dori nas estepes de Karakalpakya, frente às águas do degelo do
planalto do Pamir no rio Sirdarya, que desaguava no antigo Mar de Aral – 1972 (região por
onde passou Marco Polo na segunda metade do século XIII)