quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI - Crônica 5 – Parte II

Crônicas variadas – 1968-1974

Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte II
(Continuação da Parte I)

O pai e o irmão do colega kirguiz se aproximaram do carro e conversaram um pouco na língua deles, não em russo. Em seguida descemos do carro, nos cumprimentamos e fomos convidados a adentrar para uma antessala, cujas paredes e piso estavam forrados de tapetes e almofadas. Lá sentamos no chão ao redor de bandejas com alimentos. Ali comemos e bebemos por aproximadamente uma hora: sucos, frutas e passas, legumes, pastas e as partes de uma ovelha, aparentemente, as menos nobres. Passado este tempo, pensei que era tudo o que tínhamos que fazer naquela noite e, em breve, voltaríamos para Páhta-Aral. Mas não, na sequência nos convidaram para outro recinto, separado na sua passagem por uma cortina. Neste outro lado havia outra sala semelhante, mas maior que a primeira. Só que desta vez o ambiente se apresentava mais solene, até porque ali estavam sentados no chão seu avô e um tio, com mais alimentos postos no chão ou próximo ao chão.
De mulheres, nada! (Certamente, as que existiam estariam escondidas por ali perto, e não seriam pagãs. Mas sem dúvida, que havia mulher, havia!) As carnes oriundas do animal sacrificado durante o dia pareciam ser mais nobres, ao menos de melhor aparência que as servidas na sala anterior. Quase toda a interlocução com os nativos era feita por mim, pois o Mbui, na sua tensão ou deslumbramento, parecia estar distante. Comemos à exaustão e quando pensei ter o cerimonial chegado ao fim, meu colega kirguiz pediu para esperar um pouco mais; foi para os fundos e eu pensei: agora vai apresentar a esposa e filhos – não, não foi isto que aconteceu! Ele volta com uma linda bandeja de prata e sobre ela, a cabeça preta da ovelha cozida na água, com aquele focinho longo, com olhos e tudo e a depositou bem na minha frente. (Báh! – ... e o rosto do Mbui empalideceu) Eu não entendia! – O kirguiz disse então que, para encerrar o evento eu deveria distribuir entre os presentes um pedaço daquela iguaria - menos mal, pensei! Eu teria a oportunidade de escolher as partes menos exóticas. Escolhi então os músculos das bochechas, cuidando que também sobrasse, para mim, parte deles. Foi o que fiz. Tudo estaria terminado mas, novamente, eu errei! Falou meu colega kirguiz: - agora você deve servir ao Mbui e a si próprio as orelhas, (aquelas coisas pretas horríveis e cartilaginosas, porém mais deglutíveis que os olhos), pois hoje, comendo as orelhas diante dos mais velhos, significa que nós, os mais novos, seremos sempre receptivos aos conselhos dos mais velhos. Eu também comerei, completou. Meio que comemos, meio que mascamos partes daquelas orelhas.
Depois disto nós estávamos prontos para retornar quando, ainda na sala, o kirguiz disse que iria apresentar sua mãe: através de uma passagem para outro ambiente, de onde haviam trazido a bandeja com a cabeça da ovelha, entre duas cortinas entreabertas, mas fixas na parte superior, aparece um rosto de mulher asiática, da sua mãe; e depois, mais outro, certamente da sua esposa; e depois mais outros rostos menores, dos filhos, entre discretos sorrisos e cochichos. (Creio que já estavam a nos espiar havia algum tempo, através de alguma fresta – ao Mbui, com certeza!) Esta parte foi breve e em seguida, saímos e retornamos para a pousada já de madrugada, momento em que me senti então, uma pessoa de sorte.
 Pela tensão, respeito e escuridão, não fotografamos nada naquela noite.
Obs.: O cerimonial descrito tem alguma coincidência com certos ritos praticados nos dias que antecedem o final do período do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos, no qual eu, filho dos muito devotos, Cedalina e Theodoro Barbieri, tive a felicidade de ser um dos participantes sem ser considerado, depois, um herege.
Foto 2 – Dori nas estepes de Karakalpakya, frente às águas do degelo do planalto do Pamir no rio Sirdarya, que desaguava no antigo Mar de Aral – 1972 (região por onde passou Marco Polo na segunda metade do século XIII)

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI - Crônica 5 – Parte I

Crônicas variadas – 1968-1974


Os anos vividos por mim como estudante na URSS, na Universidade Patrice Lumumba, propiciaram oportunidades de vivenciar situações, embora ocorridas a quase meio século, ainda permanecem um tanto quanto exóticas, apesar da velocidade com que acontece a desmistificação deste tipo de ocorrência. Eu as considero como uma bagagem da vida, fundidas no mérito e na sorte. A internet tem resgatados situações passadas, que em reavivando minhas lembranças e emoções, justificam deixá-las aqui registradas.

 Foto 1 - Xanxerê, SC -1974: retorno ao antigo lar do Dori, com os pais Theodoro e Cedalina, mais a tia Dozolina, que sempre pediram que escrevesse alguma coisa sobre a URSS e eu não lhes atendi em vida. Minha homenagem agora, para eles.

Crônica 5 – Uma aventura no deserto do Kirguistão, 1972 – Parte I


Na primavera e verão no hemisfério norte, entre os meses de abril e setembro de 1972, a população do vilarejo de Páhta-Aral – sede da fazenda coletiva (kolhóz) de mesmo nome na república soviética do Kazaquistão, próximo a uma tríplice fronteira com o Uzbequistão e o Kirguistão – ficara atenta e curiosa com os novos visitantes estrangeiros, estagiários do curso de agronomia vindos da capital do país, a distante Moscou. Alguns deles realizavam suas atividades nos 20 mil hectares de plantações, setenta por cento das quais de algodão; para outros estagiários, entre os quais eu, as atividades ocorriam junto à Estação Agrícola Experimental local conduzindo as pequenas lavouras de testes e nos laboratórios. Além dos estudantes estrangeiros de Moscou, também faziam estágio alguns estudantes nativos das antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. A atenção da população local para conosco talvez se devesse ao fato histórico de que, na segunda metade do século XIII, Marco Polo passara por ali, consolidando o caminho-da-seda. Agora chegou a vez de outros estrangeiros “reabrirem” novamente a rota-da-seda!
Certo dia, no mês de agosto, um estagiário da estação experimental, cuja família morava na república vizinha do Kirguistão, com o qual eu mantinha um relacionamento distante mesmo nos vendo pelos corredores todos os dias, surpreendentemente me convidou e pediu-me que reservasse algum tempo para, junto com ele, visitar a casa dos seus familiares.
O kirguiz sempre se comportava de forma muito reservada para comigo e com os outros estrangeiros que lá, temporariamente, estavam fazendo seus estágios. A casa da família dele ficava bem distante de Páhta-Aral, nas estepes (pradarias) que eram quase um deserto. Se fôssemos adiante, bem além da casa, iríamos encontrar o Planalto do Pamir, por onde passou Marco Polo. Nesta visita, ele providenciaria tudo e iríamos com seu carro. Surpreso, eu lhe perguntei, por que era eu o convidado. A resposta foi que não me preocupasse, pois meu amigo africano da República do Záire, o Mbui Cloude, iria também.

Na noite daquele dia na pousada, o Mbui me disse que o tal estagiário kirguiz o vinha convidando, fazia dias, para esta visita e ele, por temer alguma surpresa, condicionava a aceitação, à ida de mais um outro colega seu. Cheguei à óbvia conclusão que o verdadeiro convidado não era eu e sim, o meu amigo africano. Entretanto, fiquei contente com a oportunidade de conhecer um pouco mais da região e decifrar a cabeça do colega nativo. Depois de uns vinte dias sem se ouvir mais menção sobre o assunto, pensamos que o nosso futuro anfitrião havia recuado do convite, mas não. Num dos dias subsequentes ele nos pediu que, no dia seguinte, após o trabalho na estação experimental, nós dois não retornássemos de ônibus para a nossa pousada, que ficava a uns 20 km do local, pois iríamos visitar seus familiares com seu carro e participar de uma solenidade ou coisa parecida. Depois, nos traria de volta até a pousada.
Foto 2 – Mbui e Dori: estágios na República da Moldávia, próximo à cidade de Dubassar, 1971

No dia seguinte, ficamos esperando por ele após o trabalho na estação experimental. Deu 19 horas... 20 horas..., e nada do colega. (Um novo ônibus para a nossa pousada só partiria no dia seguinte!). Passava das 20 horas, já estava um pouco escuro – era verão – quando ele apareceu com o carro e pediu para esperarmos um pouco mais. – Mas, por que? - Porque nós precisamos chegar à casa já no escuro total, respondeu o kirguiz - !?!?!?... (O Mbui tinha razão em exigir a companhia de alguém mais, pensei). Embarcamos no volga - carro equivalente a um opala, na época no Brasil - e depois de rodar longo tempo por uma estrada de asfalto compactado, sem ter visão do que havia por onde estávamos passando, chegamos a um lugar com três ou quatro tendas, ou casas mal iluminadas que, mesmo com ajuda da luz das estrelas e da lua, eu não conseguia definir. Foi possível sentir que ali próximo havia ovelhas e também cavalos e asnos, abundantes na região. Eu notava que o Mbui estava muito mais preocupado do que eu. A partir de então, ele quase não mais falou – no seu semblante somente se viam aquelas duas bagas de olhos cintilarem sobre seus lábios trementes!
 (Continua na parte II)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

VISITA À UNIVERSIDADE RUSSA DA AMIZADE DOS POVOS - II

 
 
Oswaldo no VI Encontro - Mairiporã-SP

Oswaldo Mendes
Formado em Engenharia Mecânica
Ano de formatura: 1967

PARTE II - Novo Campus da Universidade Russa da Amizade dos Povos - RUDN

Depois de visitar o antigo corpus da Universidade, que foi objeto da Parte I do trabalho, gostaria de lhes apresentar, nessa Parte II, a visita que fiz ao novo Campus da Universidade que foi fundada com o nome de Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba – UDN – mas que, após a dissolução da União Soviética, passou a ser chamada de Universidade Russa da Amizade dos Povos – RUDN.
 
Considero que os colegas que estudaram e viveram nas dependências do novo Campus, terão recordações valiosas dos tempos de estudantes naquela bonita área acadêmica.
A minha visita à Universidade se deu em meados de agosto de 2015, época de férias acadêmicas de verão na Rússia, assim como em todo território Europeu. Daí a razão de haver tão poucos alunos ou funcionários nos pátios mostrados nas fotos a seguir.

                   
Foto 1- Entrada principal da universidade – RUDN (prédios da Administração e Reitoria)




15 de outubro de 2015
Oswaldo Mendes

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

VISITA À UNIVERSIDADE RUSSA DA AMIZADE DOS POVOS - I

Oswaldo no VI Encontro - Mairiporã-SP


Oswaldo Mendes
Formado em Engenharia Mecânica
Ano de formatura: 1967


PARTE I -  Donskoi Proiezd, Boulevar, Obshejitie da Pávlovskaya, Danilovsky Rynok e Momentos Históricos da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos

Depois de algum tempo, eu e a minha esposa Lyudmila Yakovleva Mendes, decidimos fazer uma viagem a Moscou com o objetivo de rever os familiares da minha companheira de tantos anos, passear pela cidade, rever aquelas localidades que frequentávamos no nosso tempo de estudante e, claro, rever as instalações da nossa Universidade, em cujos bancos recebemos ensinamentos valiosos que serviram de base para alavancar as nossas vidas profissionais.

Deixei Moscou, de volta ao Brasil logo após a defesa da tese de diploma em 1967, acompanhado da minha aliada e esposa.

De 1967 até a presente data, desenvolvi a minha vida profissional como engenheiro mecânico na área de Turbinas Térmicas. Realizei trabalhos no setor estatal e privado, e tive a honra de transmitir os bons conhecimentos lá adquiridos aos alunos das faculdades de Engenharia da Universidade Católica de Petrópolis e Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Nessa atividade profissional, alcancei o posto de Chefe da Cadeira de Termodinâmica Aplicada e de Máquinas Térmicas.

Nesse período de 48 anos, o mundo mudou muito: Moscou mudou, nossa Universidade também mudou e, como tudo, nós também mudamos.

Grande parte do meu tempo em Moscou foi dedicado a visitas às instalações da Universidade, dando enfoque especial àquelas que eram utilizadas pela Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba na década de 60.

Como a quantidade de fotos é expressiva, vamos apresentar esse trabalho por partes. Primeiramente vou enfocar minha visita ao primeiro corpus da nossa Universidade, situado na Piaty Donskoi Proiezd. Especificamente, ao alojamento da Pavlovskaia, ao Boulevar por onde caminhávamos diariamente no trajeto entre a Pavlovskaia e a Donskoi, e vice-versa.
  
O prédio da Donskoi, onde recebemos tantos ensinamentos e onde batíamos longos papos depois das aulas, principalmente na stolovaia e no pátio ao ar livre, lá está ele, exibindo a arquitetura majestosa que me sensibilizou tanto ao voltar a subir aqueles degraus de entrada, repetindo o mesmo gesto de uma rotina que fez parte da minha vida durante os cinco anos em que lá estudei.

Foto 1 - Prédio principal da Universidade na década de 60, na Piaty Donskoi Proiezd - hoje chamada de Ulitsa Ordjonikidze.

Observem, colegas, o estado atual do Boulevar onde as árvores, naquela época, eram de pequeno porte e, agora, são de grande porte, oferecendo agradáveis sombras a quem por ele passa.

Foto 2 – Boulevar que ligava o Prédio Principal da Universidade à Residência dos estudantes na  Pavlovskaia Ulitsa – nosso caminho de todos os dias.

O prédio da Pavlovskaia continua imponente e tenho certeza absoluta que aqueles que lá viveram sentirão saudades ao olhar essas fotos.

Foto 3 – Prédio: o alojamento estudantil onde moramos na Pavlovskaia Ulitsa.

Até aquele mercado, chamado “Danilovsky Rynok”, outrora pequeno e simples, foi reconstruído e transformou-se em uma grande área de comercialização de produtos de primeira necessidade. 

Foto 4 - Após o Boulevar, está o Danilovsky rynok- nos anos 60 e 70 era apenas um mercadinho humilde, hoje sofisticado mercado frequentado por carrões.


Duas fotos de alto interesse histórico registram os momentos da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos no ano de 1960, onde, na primeira, o chefe do governo da URSS, Nikita Kruschev, fazia o seu discurso na cerimônia e na segunda, vê-se Nikita Kruschev junto com o primeiro Reitor da Universidade, Serguei Rumiántsev.

É a metamorfose da vida: tudo muda com o tempo. O corpus atual da Universidade, que naquela época estava sendo construído, hoje é um colosso com uma grande área arborizada no lado esquerdo da Lenisky Prospekt, no sentido ao bairro. Todas as construções dos grandes blocos das diferentes faculdades e das residências estudantis foram feitas com uma arquitetura moderna, como merece uma grande instituição de ensino moderno e avançado.

Essa parte do atual corpus da Universidade será objeto da Parte 2, a ser postada no nosso blog oportunamente.

Colegas, vocês não imaginam o estado da minha alma quando visitei aqueles lugares onde passei o melhor período da minha juventude. Certamente, o mais encantador da minha jornada estudantil.


Foto 5 - Momento histórico: o chefe do governo da URSS Nikita Krushev profere o discurso na Fundação da Universidade da Amizade dos Povos.

Foto 6 - Momento histórico da Fundação da Universidade da Amizade dos Povos em 1960, onde se pode ver o chefe do governo da URSS, Nikita Krushev, e o primeiro reitor da Universidade da Amizade dos Povos, Serguei Rumiántsev.


Nos próximos textos abordaremos outros temas relacionados com a minha visita à Universidade Russa da Amizade dos Povos (RUDN), ex-Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, e a outros pontos atrativos da cidade de Moscou.

15 de outubro de 2015
Oswaldo Mendes