CANTINHO DA SAUDADE
TEMPOS DE ESTUDANTE NA URSS – DORI C. BARBIERI
Crônicas variadas
– 1968-1974
PARTE
III – Crônica 4 (Continuação
da crônica 1): ...1968 no Baikonur e em Tashkent
- Uzbekistão
Após as infindáveis horas vividas no inferno gelado dentro do
hangar, anunciou-se que em breve embarcaríamos no IL-18 para Tashkent, imaginamos
que o suplício estava terminando. Mera ilusão! No curto trajeto até a aeronave
na pista, ocorreram as fotografias mencionadas anteriormente e na sequência, subi
a escada do avião sentindo as luvas parecer grudando no corrimão da mesma, mas
imaginando encontrar, ao final, um salão de passageiros caloroso e confortável.
Foto 1 - Embarque no Baikonur: Dori e o guarda kazak que queria impedir as fotos
O avião passara dezenas de horas ao relento e todo ele havia alcançado
inclusive internamente, a temperatura do ambiente externo, com 30 ou mais graus
negativos, não mostrando ainda, nenhum sinal de vida própria. Pensei que minhas
roupas pudessem grudar no assento – Não
grudaram! Mesmo com todos os passageiros sentados, a porta permanecia
aberta e a aeronave, sem vida mecânica. Só depois de meio-hora foi possível ver
as hélices de apenas um dos motores se mover. Nos dez minutos iniciais, os
giros delas eram como a de um ponteiro dos segundos de um relógio. Às vezes
paravam para depois recomeçar a girar com mais rapidez. Finalmente, ocorreu a explosão
interna própria do motor. Creio que só para este primeiro motor, e eram quatro,
passaram-se uns 50 minutos para atingir giro máximo. Quanto ao aquecimento
interno, nada! Exceto o calor humano
e o vapor das narinas, que a essa altura ajudavam aquecer o avião. Assim, com este gasto de tempo do primeiro motor, sucessivamente
foram ligados os três motores turbo hélice restantes. Creio que o procedimento
consumiu umas três horas de espera, tempo suficiente para nós, os passageiros, esquentássemos
o interior do avião, ou para morrer sufocados se a porta não tivesse estado
aberta. Certamente, foi explicado aos demais passageiros em língua russa e
uzbeke o motivo daquela lentidão, que só fomos entender mais tarde: rolamentos,
mancais, eixos e peças móveis quando expostos a temperaturas tão baixas, são
como cristais que, com o menor impacto ou atrito, podem se danificar.
Ao chegarmos a Tashkent, procuramos
um taxi e rumamos para o Hotel Intourist, o hotel dos turistas na URSS, com
passaportes de estrangeiros, conversa de estrangeiros e o mais importante,
moeda forte - as verdinhas se fosse
preciso, o Caio disse que tinha em espécie, e eu, em travellers. Tudo em vão.
Os funcionários e o gerente do hotel foram inflexíveis: Só com reserva prévia.
E o hotel, parecia vazio. (Penso agora, que o forte frio atípico para a região
pôde ter provocado o colapso do sistema de aquecimento e tinham vergonha de
admitir isto para duas autoridades
brasileiras). Contudo, ajudaram-nos ligando para outros lugares e no final, nos
indicaram um tipo de pousada para onde o taxista nos conduziu. Mas lá, não recebiam estrangeiros. Voltamos
ao hotel para tentar de novo e de novo, nada. O final do dia se aproximava e o
pavor do frio, assustava. O taxista nos levou então para uma casa de estudantes.
Mas, aproveitando a ausência dos estudantes que haviam entrado em férias, o
sistema de calefação estava em manutenção. Creio que foi o taxista que
convenceu um casal de velhinhos que cuidava do local a nos receber para
pernoitar. O vovô e a vovó nos
alertaram que, água quente só havia no andar térreo, próximo à cozinha, e o
quarto, seria no terceiro andar, só com cama e roupas, sem calefação. Tínhamos chegado ao paraíso!
Foto 2 - Dori em frente à Casa de Estudantes Foto 3 - Caio e Dori passeando por Tashkent
Na manhã seguinte o casal nos serviu o “café” (na realidade o
chá) e começamos a nos apresentarmos. O fato de sermos da terra do Pelé e
Garrincha – algozes dos russos na copa de 58 – selou nossa amizade. (Algozes, pela frustração causada e não por
outro motivo.) Mandamos todos os hotéis e palácios da cidade às favas e
fizemos do local, nossa base
verde-amarela na União Soviética. Saíamos de manhã para conhecer a cidade e
seus arredores, situada junto à antiga rota
da seda e voltávamos ao final da tarde.
Vimos e vivemos os costumes e os hábitos
da culinária local: macarrão e variedades de tortéis, chás de primeiríssima (no
sabor) acompanhados de pelotas de queijo duro de cabra para roer, passas de
frutas ou melão seco, discos de pão assado na pedra ou em tijolos, o risoto plôv e os espetinhos deliciosos de
carne de ovelha karakul, cuja parte mais apreciada é o rabo, que tem a forma e
textura de um cupim de zebu, pendurado na traseira.
Frequentamos as
mesquitas e os barzinhos da cidade,
aliás, as casas de chá daquele povo amável. (Os
burocratas antipáticos do hotel deviam ser, todos russos!)
Foto
4 - Dori e o lanche de espetinho de ovelha com
macarrão e a chaleira do chá
Foto 5 - Dori defronte a uma
mesquita Foto 6 – Dori e um Uzbek típico
-
da cidade velha Tashkent 1968
Foto
7 - Dori numa Casa de Chá típica da época - Tashkent
1968
O frio amainava aos poucos, mas ainda
era muito forte e nos torturava. Depois de quatro ou cinco dias em Tashkent
decidimos voltar para Moscou. Uma das formas de gastar as infindáveis noites
das férias no inverno de janeiro era jogando canastra com brasileiros e latinos
no quarto do Carioquinha na Rua Mosfilm. Ali o revezamento dos presentes entre as
partidas e o preparo de feijoadas ou macarronadas nas madrugadas, era intenso e
agitado. O Caio, creio eu, passou o resto das férias de inverno se aquecendo nas
saunas de Moscou, pois andou meio desaparecido.
Foi este o meu batismo na Ásia Central em tempos de um
rigoroso inverno russo.