domingo, 21 de junho de 2015

CANTINHO DA SAUDADE

LEMBRANÇAS   DAQUELA   ÉPOCA
Syleno de Castro Ramos

1 – O beijo no pescoço
Com poucos dias que havíamos chegado a Moscou, fomos com uns brasileiros mais antigos dar um passeio por alguns pontos da cidade. Esses nossos compatriotas estudavam na MGU e nós havíamos chegado para estudar na Universidade Patrice Lumumba. Ao chegarmos próximos à estação do Metrô Universitiet, havia um quiosque onde se vendia chopp em caneca. Então nosso colega Pushkin, brasileiro muito parecido com o poeta russo Pushkin, perguntou se nós queríamos experimentar o chopp russo.  Claro, todos concordaram. Então, o Pushkin falou com um dos pinguços que estava na fila do chopp e pediu que ele ajudasse os novos estudantes a experimentar o chopp russo. O “pinguço” era o jardineiro da MGU, conhecido do Pushkin que, educadamente, pediu para os russos da fila que esperassem um pouco, que ele iria nos atender. Postou-se então junto ao vendedor de chopp, pegava as canecas e as entregava aos brasileiros. Quando chegou a minha vez, eu quis mostrar que já sabia um pouco de russo e disse-lhe: spacíba tavárish. O cara ficou tão feliz que me pegou para dar um beijo na boca. Eu só tive tempo de virar a cabeça e o beijo acertou o meu pescoço. Isso foi motivo de gozação dos brasileiros pelo período de dois meses.

2 – A experiência de comer o pastel russo
Quando meu amigo Pedro chegou das férias, saímos para que ele me mostrasse alguns pontos da cidade. Andamos por vários lugares. Ao chegarmos próximo ao Conservatório Tchaikóvsky, ele perguntou-me se gostaria de experimentar um pastel russo. Pelo fato de não conhecer, aceitei. Fui comer o pastel, mas sem muita preocupação. Estava gesticulando, quando vi que o pastel estava derramando um caldo pelo salão da lanchonete. Eu não sabia, mas os pasteis russos são preparados com o recheio cru, ou seja, a carne moída é temperada e colocada na massa. Com a fritura, a carne forma um bolo e todo o líquido sai da carne. 

3 – Como você se chama?
Num belo dia do primeiro inverno que passei em Moscou, chegamos com alguns minutos de atraso para as aulas na Faculdade Preparatória. Éramos três os brasileiros retardatários naquele dia. Ao entrarmos, uma russinha do Komsomól olhou-me da cabeça aos pés e perguntou, com caneta e caderno nas mãos: Kak vas zavut? Sem titubear respondí: Cajazeiras. Ao escrever, a russinha perguntou novamente: Ímia i família? Dá, dá, respondí. Naquele momento fiquei sendo o Kajá Zeiras, ou seja: nome e sobrenome que nunca foram meus. Os brasileiros retardatários daquele dia não puderam conter o riso e deram boas gargalhadas por conta disso.

4 – O peido pega fogo
Ainda na Faculdade Preparatória, morávamos no mesmo quarto: um brasileiro mais antigo, um russo - tártaro de origem - e eu. Pelo fato de ainda não me expressar bem em russo, o brasileiro mais antigo era o intérprete entre mim e o russo. Nós, ansiosos para conhecer a cultura um do outro, conversávamos sobre assuntos variados. Num dia, numa dessas conversas, eu disse que o gás do peido é o mesmo que queima nos fogões. O Russo não acreditou e, poucos dias depois, por volta de 7 horas da noite ele, só de cueca, deitou-se na cama, pediu que apagassem as luzes, levantou as pernas, acendeu um palito de fósforos e fez a sua experiência. Vale ressaltar que a cueca do russo era de tecido sintético. Resultado: saiu uma enorme chama de coloração esverdeada, além de um grande rombo que ficou no fundo da cueca do russo. Com um diâmetro aproximado de 20 centímetros.

5 – Mancada no idioma
Numa aula de russo, ainda na Faculdade Preparatória, a professora mostrava um quadro e pedia aos alunos, um de cada vez, que descrevesse tudo o que aparecia naquele quadro. Quando chegou a minha vez, a mestra mostrou-me um quadro em que estava uma moça muito bonita, vestindo uma blusa de cor laranja, com um lenço azul no pescoço.  Comecei a descrever oralmente aquilo que via no quadro. Na hora de dizer que a jovem estava com um lenço (platók em russo) no pescoço eu disse que a moça estava com um patalók (que em russo significa teto) no pescoço. Claro, isso foi motivo de risos para a professora.

6 - Quem inventou o alfabeto?
Certa vez, conversando com uma russa, amiga da minha esposa, não lembro bem qual o assunto que rolava no momento e, a certa altura da conversa, eu disse que os estrangeiros que estudavam russo sentiam uma grande dificuldade não só para falar mas, sobretudo, para escrever. E a culpa de tudo isso era de quem havia criado o alfabeto russo, que também é conhecido como alfabeto cirílico. Imediatamente, ela respondeu em russo: Kiril y Mifode. Aí eu não pude me conter e comecei a dar sonoras gargalhadas. Em português, os nomes dos criadores do alfabeto russo são Cirilo e Metódio.

7 - Você é de onde?
Os nomes de algumas das ex-Repúblicas Soviéticas eram Tadjiquistão, Uzbesquistão, Kazaquistão, etc. Um colega chileno aproveitava-se da pronúncia para fazer uma mistura com algumas palavras espanholas de significado não muito sério, para quem fala espanhol. Certo dia, depois de deixar a namorada em casa, fui para a parada tomar um ônibus e ir para o meu alojamento. Estava esperando o meu ônibus, quando chegou um russo, que foi logo puxando conversa a respeito de onde ele estava naquele momento, pois havia se confundido, etc. Pelo meu sotaque, ele logo percebeu que eu não era russo e perguntou de onde eu era. Imediatamente, lembrei-me do colega chileno e disse em russo: eu sou do Tchutchelesquistán. Aí, ele disse que não sabia da existência daquele lugar. Nessas alturas eu não sabia qual seria a reação dele e disse que se tratava de uma república autônoma. Ele insistiu que havia estudado muito bem geografia e não conhecia a tal República. Aí eu me saí com essa: Tchutelequistán era o lugar onde nasciam as Tchútilas (que em russo quer dizer espantalho). Aí, ele riu e disse que gostou daquela brincadeira.

8 – As traduções do meu amigo nepalês
Um colega de curso, nepalês, gostava de brincar com algumas siglas em russo, como por exemplo: URSS, que em russo fica CCCP (ou SSSR, em letras latinas) e ele dizia que aquilo significava: Stacán Samagona Stóit Rubl (em português quer dizer: um copo de vodka caseira custa um rublo).  Nossa Universidade tinha, como sigla, UDN - Universitet Drujby Naródov - e meu amigo do Nepal traduzia assim: Uejáite Damói Nemiédlena  (Volte pra casa imediatamente).

9 – Piadas da época
Um indivíduo pergunta para o outro: Você sabe quando foi que Lênin disse a célebre frase: “É necessário estudar, estudar, estudar”? Todo mundo sabe que foi no encerramento do 2º congresso do Komsomól. A resposta, claro, é imediata. Aí o sujeito diz: Não senhor, Lênin disse essa frase quando deu uma olhada na caderneta escolar do jovem Bréjnev.

10 – Que instrumento você toca?
Poucos dias depois que comecei a namorar a Natasha,  que depois tornou-se minha esposa,  numa conversa para nos conhecermos melhor ela perguntou-me se eu tocava algum instrumento musical. Respondi que sim.  Com a curiosidade natural ela perguntou qual o instrumento que eu tocava. Então, disse-lhe: caixa de fósforos. Afinal qual o brasileiro que nunca fez batucada em caixa de fósforos? A resposta causou estranheza considerando a diferença cultural existente entre nós.

11 – O sumiço da vodka
Eu pretendia estudar para fazer uma prova que teria em breve. Outro brasileiro, que morava no mesmo quarto que eu, resolveu, fazer uma pequena farra no quarto com seus amigos. Compraram as bebidas: conhaque, cerveja e uma garrafa de vodka da marca stolítchnaya. Sem poder proibi-los de fazer a farra, resolvi roubar a garrafa de vodka e avisei que iria estudar no quarto de um colega da minha classe. Quando a turma chegou pra farra, a garrafa já estava longe dali, onde foi consumida por mim e meus amigos (outro brasileiro e um equatoriano). A culpa pelo sumiço da vodka ficou com o cearense que andava por lá.

12 – Tichiná
Na fase final das aulas práticas de Planejamento Agrícola, na cidade de Tiráspol na Moldávia, pediram-nos que fizéssemos algum tipo de apresentação artística, como teatro, dança, canto, etc.  Os africanos apresentaram uma dança típica, os latino-americanos apresentaram a dança da Cúmbia colombiana. Eu era o único brasileiro ali. Insistiram comigo para que eu apresentasse algum número, como dançar um samba ou algo semelhante. Sem ter nem ao menos cacoete de artista, prometi que iria cantar uma linda canção brasileira, intitulada “Tichiná”, que em russo significa silêncio. Quando fui anunciado, entrei no palco e reverenciei a plateia. Todos ficaram esperando a minha voz numa suposta linda canção. Depois de algum tempo, todos entenderam que silêncio seria o meu comportamento no palco. Aplausos. 

Um comentário:

  1. Fiquei muito comovida com essa leitura. Me pareceu estar ouvindo a voz de Syleno contando esses fatos. Fomos vizinhos por muitos anos e colegas de classe no GEC. Anos depois de sua volta ao Brasil, me convenceu e às minhas filhas Indra e Giselle a estudar o idioma russo! era uma pessoa maravilhosa. Um amigo e camarada leal de fato. Saudades!

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