domingo, 24 de abril de 2016

Liberez Ben-Bella!

Cheguei a Moscou em 16 de agosto de 1961. No dia 25 Jânio Quadros renunciava ao cargo de presidente da República. No início de novembro descobri a neve e, no final de janeiro de 1962, nas férias de inverno que passei com alguns alunos na casa de descanso Mônina – às margens do Rio Moscou – enfrentei o inverno mais frio de todos os meus anos de Patrice Lumumba: - 32°C!
            A quadra de basquete servia de pista de patinação. Como eu já aprendera a andar com patins de rodas no Brasil, minha adaptação aos patins de lâminas foi rápida. Nunca me esqueci do Valódia – um garotinho de uns oito anos – que estava na pista. Sua carinha de peralta não enganava. De repente, pegou minha shapka, encheu-a de neve e saiu correndo, e eu atrás dele. Mas ele patinava tão bem, que me driblava facilmente. Tive que pedir arrego: Valódia, radi boga! Mne kholodno na golove. Otdai obratno moiu shapku! Felizmente o safadinho se sensibilizou!
            Mas, o que quero resgatar mesmo é um episódio protagonizado por um jovem argelino – super-alto-astral – cujo nome esqueci. Vou chamá-lo de Samir Kayan. Não era um árabe puro sangue, era mestiço (pai árabe e mãe francesa). Vivia sorrindo e brincando. Numa das refeições, como estavam demorando a servir, ele começou a cantar em francês – usando a música Barqueiros do Volga – improvisando apelos para trazerem água e repetia um refrão: Nous avons soif! Nous avons soif! Ao final, foi aplaudido por quem entendeu o que cantava e até por quem não entendeu...
            Mais tarde, na primavera (acho que no final de abril), Samir e outros colegas argelinos nos convidaram – e a outros jovens de todos os países – para participar de uma manifestação em frente à embaixada francesa. Lá fomos nós (lembro-me do Sílvio Aranha, do Artur Leandro e do Américo Orlando entre os brasileiros que participaram). No local – com faixas e a palavra de ordem Liberez Ben-Bella! – gritávamos bem alto, com os punhos cerrados, exigindo a libertação do líder maior da Revolução Argelina que tinha sido preso pelos franceses.
            No dia 5 de julho de 1962 ocorreu a vitória da Revolução. A Argélia se livrava da colonização francesa, depois de mais de um século de exploração. De repente, caiu minha ficha. Samir desaparecera da Patrice Lumumba. Perguntei por ele a colegas argelinos. “Depois da vitória da Revolução, ele regressou a Argélia. Não quis ficar”. Jovem militante da causa revolucionária desde a adolescência, ele não conseguiria ficar tanto tempo longe da pátria. Voltou para ajudar a reconstruir uma nova Argélia, liberta do jugo colonial francês.
            Nunca mais tive notícias de Samir Kayan.

Emerson Leal – Abril/2016.